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domingo, 17 de julho de 2011

ÀS DUAS, EM PONTO, uma crônica de Jairo De Britto


Perguntado sobre qual seria, na sua opinião, o melhor livro, um grande escritor inglês
(conservador e de primeira linha), respondeu rápido: o Dicionário. E explicou:
"Nele estão contidos todos os livros do mundo"!

As chamadas frases de efeito, como as orações que não partem direto do coração
do crente, provocam sempre surpresa. Ou alguma reflexão sobre sua dubiedade,
quando atingem os ouvidos de alguns ou muitos homens.
Elas sempre trazem consigo suas próprias antíteses, a despeito de quão sábios, ou apenas bem humorados, sejam seus autores.
No que tange às orações 'cerebrais', acho que despertam em Deus apenas Sua imensa
Piedade.

Gostaria de saber que horas são. Com a mesma certeza, e a suave simplicidade, com que meu Amor sabe que “as cortinas são a roupa da casa”; com o seu mesmo sereno observar do homem (e do pai) que acompanha a progressiva iluminação da Cidade - à proporção que se aproxima o Natal.

Gostaria de recuperar, na crônica, a palavra 'Gratidão'. Substantivo que procuro aprender a aceitar e a exercitar como de “mão única”: devo sempre ser grato e nunca aguardar a mesma atitude de outrem. Simples (?) - e por tantos já bem dito!

Gostaria de saber que horas são. Com a exatidão das poucas certezas de que disponho
em mais de meio século de vida: embora necessário, e mesmo indispensável, é muito
difícil perdoar e gostar. Ou desejar o Bem àqueles que nos ofendem.
Mas, quando o fazemos, a sensação é sempre prazerosa! Ainda que indescritível em sua amplitude. Como acontece com o Amor, a Fé ou a Esperança...

São duas – a Mulher e a Menina, que se alternam ante meus olhos; que se misturam
quando se entregam; que se confundem quando dizem “Eu te amo”! Que, às vezes com
medo, porém enlevadas pela cumplicidade que o corpo e a beleza do singular alfabeto que seu amante arma e desarma, verte e inverte, perguntam-se:
Afinal, o quê ele faz? O que pretende da Vida?

São duas – a Mulher e a Menina, que ele ausculta enquanto é observado com amorosa
complacência; com enorme ternura e com quase infinitas dúvidas:
Qual é a sua profissão na Vida? Qual é a sua Profissão de Fé? À noite, em São Paulo ou Porto, ele trabalha? Ao fim e ao cabo, como ele perde ou ganha a Vida?

Neste ponto, recolhem-se e refletem sobre a inutilidade da Poesia, do Conto, da Novela, da Prosa Poética que ele, por exemplo, agora lhes oferece com as mãos limpas, fortes e francas.

Mãos tão francas quanto sua atroz e voraz autocrítica; quanto sua permanente melancolia;sua indisfarçável fome de Beleza. Aquela, que procura saciar caçando palavras, juntando frases em dunas que pairam sobre o alvoroço dos ventos e de seus cabelos negros, que anunciam fios de marfim.

São duas. Que não permitem aos outros sequer questioná-las sobre ele e seus afazeres. Quanto mais elas o observam, divisam - no raso horizonte de tantos papéis - um homem afeito a inutilidades; um homem entregue a letras fatais.

Um homem que se acredita sem qualidades e que luta com tal velocidade -- além do Fim,do Mar e da Luz –, que seus olhos o percebem apenas imóvel.Um homem que deixa, da boca, escapar somente um mantra azul – que as submete, fortalece e domina.

Gostaria de saber das horas exatas que antecedem o verão; das horas extras que precedem o coito de cada íntimo parágrafo. Mas, perdido enquanto trituro palavras afoitas, consigo apenas olhar a Cidade, ouvir seus tantos ruídos e rumores; sentir seus odores, velar suas noites de prazer e dor.

Sim, perdido enquanto mastigo palavras de uma língua estranha, driblando a sorte e a morte,caminho até a cozinha, cantarolando:

“Something on the way she loves me/Attracts me like no other lover/…”

Então, consigo ver a Mulher e a Menina zangadas - por saberem que ando a vasculhar o seu mais ousado, intenso e íntimo pensar. Mas, quando nossos lábios se aproximam; quando as aquieto em abraço, miro o relógio e, sem remorso ou desculpas, me entrego. Às duas, em ponto.


*Jairo De Britto,
em “Verdes Crônicas”