Hoje, Agustina Bessa-Luís, uma das mais consagradas escritoras portuguesa, está completando 86 anos de idade, escolhi um texto de Inês Pedrosa, para homenageá-lá.
A POESIA CARNAL DE AGUSTINA
por Inês Pedrosa
«Cada voz está só e é única e é contra o coração dos outros, vertiginosamente, que ela ressoa». Esta frase de Agustina acompanha-me todos os dias. Ilumina as tragédias dos telejornais como a tristeza quotidiana da mulher que confessa à amiga a sua decepção, numa mesa de café. As mulheres desiludem-se, ao contrário dos homens, que são ensinados a viver sem ilusões. Às mulheres, ensina-se-lhes a viver sem tudo menos isso. Por isso as mulheres são especialistas em sobrevivência: é-lhes muito difícil perder a esperança, uma nesga de esperança que seja. Há dias, um amigo dizia-me que a razão pela qual os homens mandam no mundo é o cuidado que têm em evitar conflitos directos. À primeira vista, isto parece uma qualidade – mas significa na realidade um exercício constante de desvio face às pequenas, médias e grandes iniquidades. Sublinho que foi um homem quem me explicou isto – e esta explicação responde a uma das afirmações mais repetidas acerca da obra de Agustina: a de que as mulheres têm nos seus livros uma força muito maior do que os homens. Os livros de Agustina têm a arte de ser ampliações da vida, isto é, frescos da existência pintados do ponto de vista da duração, entendida do ponto de vista do filósofo Henri Bergson – o correr do tempo uno e indivisível. Agustina consegue ver o passado à transparência do presente e antecipar o futuro, porque não se perde no microcosmos do tempo físico. Atinge o precário e o eterno para lá do teatro das aparências, sem se deixar encandear pela linearidade dos relógios. A sua leitura é, por conseguinte, uma experiência metafísica – ou poética.
Há meses, Eduardo Lourenço decidiu definir poesia através da leitura integral de uma página ao acaso de um romance de Agustina. Terminada a leitura, disse apenas: «isto é a poesia». Momento particularmente comovente porque se tratava de uma sessão em que o homenageado ( pela revista de poesia «Relâmpago») era o próprio Lourenço. Em qualquer página de Agustina encontraremos qualquer coisa que nos diz respeito e nos consola – nem que seja pelo riso, ou pela partilha do desespero. Cada voz está só e é única, sim – o mérito de Agustina começou por ser o da escuta, a que se habituou desde menina, beneficiando da liberdade concedida pela falta das expectativas dos adultos ácerca dela – havia um rapaz na casa, o seu irmão, e desse é que se esperavam as grandes coisas. Desenvolveu uma capacidade empática profunda com toda a espécie de criaturas, uma capacidade despida de preconceitos e julgamentos. Deixou-se fascinar pelas relações humanas que analisa ao microscópio, com o olhar clínico e cândido de quem está disposto a aceitar todas as surpresas que a vida traz.
Uma das injustiças que lhe foi feita foi o rótulo de «conservadora» ou mesmo «reaccionária» que criou um cerco de solidão em seu redor, prejudicando-lhe muito a merecida repercussão internacional. Algumas vozes, porém, ousaram furar este cerco, que chegou a ser feroz, antes do 25 de Abril. Uma dessas vozes lúcidas e corajosas foi a de José Saramago, que escrevia sobre Agustina, em Janeiro de 1968, na revista «Seara Nova», o seguinte: « Como é possível, resistindo e opondo-nos embora no plano das ideias e da sua prática, não ser submergido pela beleza torrencial desta escrita, que não tem igual na literatura portuguesa deste tempo? Como é possível ficar indiferente a certas bruscas iluminações que vão mais longe e mais fundo, no sentido do conhecimento de si e do outro, que todo o material de análise que comumente manuseamos? Como é possível não reconhecer e declarar que se há em Portugal um escritor onde habite o génio ( vá esta palavra, ainda que perigosa e equívoca) esse escritor é Agustina Bessa-Luís?».
Nenhum grande escritor pode ser um «conservador» ou um «revolucionário», porque o que faz um grande escritor é, antes de mais, esse dom de liberdade que não se compadece com classificações. Diz Olga Rodom, em As Fúrias (1977): «A liberdade é uma serpente que rasteja como a inveja primeiro, e depois açoita como a vingança». Sim, a liberdade açoita inexoravelmente as limitações mentais de cada época, expondo-as em carne viva. O pensamento de Agustina não se deixa pastorear, e é isso o que, muitas vezes, ainda hoje, não lhe perdoam – mesmo na hora da consagração, escamoteia-se-lhe o desassossego, a irreverência e a ultra modernidade. Agustina não é uma senhora de alento que escreve uns romances serenos sobre as gentes das margens do Douro. É, isso sim, uma prodigiosa intérprete das motivações humanas. Ninguém como ela entendeu e escreveu sobre o poder, a paixão, o desejo e os seus maravilhosos desastres. No seu último romance, A Ronda da Noite (2007), define com exactidão «os novos feudais»: «A verdade é que os novos feudais estavam a apoderar-se de regiões até aí proibitivas, mas que se mostravam preparadas para os receber. Os media, as revistas de lazer e laudatórias do grande empresário; e toda uma fileira da direita liberal, enfim verdadeiramente segura de que a hora tinha chegado.» E conclui: «Afinal a revolução não emancipara os pobres, os infelizes, só os tornara menos anónimos. Lamentavam-se como crucificados, mas faltavam os meios para os descer da cruz». Quem quiser compreender as engrenagens que movem Portugal e os portugueses, tem de ler Agustina. Está lá tudo, sobretudo o que ainda não se vê.
Não esqueço que uma das suas últimas intervenções públicas foi o apoio à lei da interrupção da gravidez. Logo no início de A Ronda da Noite, morre Patrícia Xavier, aos quarenta anos, em meados do século XX: «Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. (...) Um aborto não era tão extraordinário e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos médicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham previsto mas não acautelado». O doutor Horácio soluçou de raiva sobre o corpo dela, porque Patrícia recorrera a ele «já desfeita por dentro como uma mulher de má vida às mãos de uma abortadeira vulgar, dessas que só falam dos netos lindos que têm e que respiram a virtude do matrimónio» Pobre doutor Horácio. «Tinha pena das mulheres, sempre a sangrar, sempre avariadas de dentro, carregando a cruz do sexo, maior que a de Cristo. Não perdoava que fossem tão mal feitas para o amor, com buracos a mais, sempre a desfazerem-se de medo, de sofrimento, e, no entanto, “prontas para outra”, batendo fortemente os tacões com a vitalidade das suas entranhas que até lhe saíam pelos olhos radiantes. E depois escreviam versos, as pobres coitadas! Todavia, quanto poder no sangue do seu ventre!»
Insisto em citar o seu último romance, não só porque o considero uma obra-prima, mas porque me parece que a fama de A Sibila (1954) acabou por curto-circuitar o entendimento da obra de Agustina. A figura poderosa da Sibila colou-se à autora e tornou-se um estereótipo de compreensão, preguiçoso e falso como todas as ideias-feitas. Ora se os livros iniciais de Agustina são já esplendorosos de sabedoria e notáveis pela reinvenção implosiva da língua e da arte de contar, os romances das duas ou três últimas décadas, à razão de um por ano – além dos volumes de crónicas e ensaios, igualmente importantes – levam esse esplendor a cumes nunca antes experimentados, filosofica e estilisticamente. A escrita tornou-se-lhe mais solta e clara. A própria Agustina o sentia, e dizia-me: «já não tenho que provar nada a ninguém». A intuição, a curiosidade e a experiência do mundo cresceram exponencialmente nela, ao longo do tempo.
Ninguém como ela é capaz de descrever a força erótica que rege o universo. Em A Quinta-Essência ( 1999) escreve: «O sexo é uma matéria inteligente e pode ter um efeito mortal». Contra as ideias comuns sobre a sexualidade dos homens e das mulheres, escreve: «O abismo do entendimento entre o homem e a mulher radica no facto de que para a mulher o sexo é uma verdade. Quanto ao homem, ele nunca encarou a verdade como qualquer coisa impossível de ser mudada.» E analisa: «O trabalho ocupa nas quedas eróticas um papel primordial. Em geral, quando se diz trabalho quer-se dizer falta de recursos para ser amado. Tudo gira em volta dum erotismo que não é descoberto senão quando já é demasiado tarde e as pessoas estão à beira da morte, estropiadas ou meio imbecis. E dizem que o trabalho as envelheceu e tornou num farrapo. Mas é o coração que foi batendo sem qualquer resultado; é o coração que abre sulcos na pele, cria verrugas, endurece as unhas». Em Prazer e Glória (1988) recordava: «Não há império maior do que o que se tem sobre os vícios dos outros». Em A Ronda da Noite, avisa: «A perfeição não é erótica. É o erro que é erótico e não a beleza». Os seus aforismos só formalmente são ocidentais – ou seja, vestidos de lógica e de uma coloquialidade reflectida. Interiormente, correspondem à cintilação imprevisível e amoral do haiku. Para lá deles, sobrevivem as suas inesquecíveis personagens. A que mais íntima se me tornou é Maria Pascoal, protagonista de Um Cão Que Sonha (1997), que dizia: «Nasci adulta, morrerei criança». É esse o trajecto de qualquer escritor digno desse nome, isto é: alguém que procure nas palavras o caminho doloroso da verdade, e que consiga preservar a inocência de mergulhar a fundo no seu contrário. Agustina fez isso, e muito mais. Ofereceu-nos o entendimento das múltiplas almas que cada existência comporta. E deu-nos a possibilidade da beleza, que é a coisa mais difícil, íntima, imperfeita e consoladora que existe.
(Nota: este texto foi escrito e publicado na revista comemorativa da 11º edição do encontro de escritores Correntes d'Escritas em Fevereiro de 2010 na cidade da Póvoa de Varzim. Agustina Bessa-Luís faz anos hoje- 15/10/2010)